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"O objetivo do projeto é que a rapariga permaneça na escola e que transite para o ensino secundário", Júlia Nihipo, Girl Mover, Moçambique

Este post resulta da conversa entre a Dalvia Rodrigues, estagiária da 23ª edição com Júlia Nihipo, Coordenadora do Programa Believe e Girl Mover da 1ª Edição do CHANGE
"O objetivo do projeto é que a rapariga permaneça na escola e que transite para o ensino secundário", Júlia Nihipo, Girl Mover, Moçambique
Mwarusis: meninas da 7ª classe que participam no programa BELIEVE da Girl MOVE Academy

Dalvia Rodrigues | Ed. 23  | 2019 | Girl Move Academy | Nampula, Moçambique

Moçambique é o 6º país mais pobre do mundo, segundo o Fundo Monetário Internacional.  A taxa de analfabetismo feminina chega aos 49,4%, sendo que 38,8% das meninas dos 6 aos 17 anos não estuda.

Por sua vez, a província de Nampula é a mais populosa de Moçambique, segundo os Censos de 2017 e 51,8% da população são mulheres. Só 88,8% dos jovens com idade oficial para frequentarem o ensino primário realmente estuda, e somente 7,6% com idade correspondente ao ensino secundário o frequenta. Infelizmente, estes números alarmantes ajudam a perpetuar o ciclo de pobreza.

A Girl MOVE Academy foi fundada em 2013 como promotora do desenvolvimento e empoderamento da mulher, permitindo-lhe desenvolver competências para o futuro. Em Moçambique, atua através de 3 programas interligados: BELIEVE, LEAD, CHANGE.

Júlia, gostaria que começasses por contar a história da Girl MOVE Academy: como foi formada, quais as motivações, porquê a escolha de Moçambique e Nampula.

A história da Girl MOVE começou em 2013. Nesse ano, a Alexandra Machado (fundadora) fez uma viagem por África e por Moçambique e acabou por descobrir a história e perceber como nós vivemos e quais são os desafios que enfrentamos. Sentiu a necessidade de criar algum mecanismo para ajudar a ultrapassar alguns destes desafios. E foi assim que começou este “bebé” Girl MOVE. Juntou-se ao Luís Amaral e começou a concretizar esse sonho.

Começou em Nampula porque aqui a cultura diz que a rapariga casa cedo, engravida cedo e desiste da escola e estes aspetos são muito mais fortes em comparação com as restantes partes do país. E foi exatamente por isso que decidiram começar em Nampula. E quando chegaram cá, o que toda a gente dizia é que seria impossível e que não teria frutos por causa desta questão cultural.

O objetivo do projeto é que a rapariga continue na escola e que transite para o ensino secundário, porque é nesta faixa etária dos 11-12 que as meninas desistem do ensino, porque engravidam. A distância entre a escola primária e a secundária é muito grande e por isto e outros motivos preferem desistir. Foi por esse motivo que decidiram ficar, por ser difícil e por ser um problema tão grande em Nampula.

Inicialmente, começou com um mapeamento com o objetivo de conhecer melhor a realidade de Nampula e dos bairros, o que veio confirmar  o que se pensava sobre as meninas desistirem da escola. Em 2014, começaram as primeiras sessões do projeto Mwarusi (palavra macua – dialeto da região de Nampula – para “rapariga”, “donzela”).

Na altura, só existia este programa com o objetivo de a menina permanecer na escola. Os grandes parceiros foram as escolas primárias, que a Girl MOVE identificou como tendo o maior número de desistência escolar. Foi um ano de descobertas, de ensaio, erros e celebrações. Nessa época, um dos maiores desafios que encontrávamos era o facto de a população ainda não olhar com bons olhos o projeto, e as meninas por influência dos pais também não aderiam tanto. Mas, como as pessoas que estavam a implementar o projeto também eram de Nampula e já conheciam esta realidade, foi mais fácil convencê-las a participar. Em 2014 começámos com o currículo Mwarusi e o objetivo era trabalhar as competências das meninas relacionadas com habilidades para a vida e apoio escolar.

Quando surgiram os outros 2 programas e a mentoria em cascata como temos hoje?

Em 2014, já existia a visão que a mentoria em cascata seria o melhor modelo. Por isso, existiam mentoras, que eram manas que estavam a terminar a faculdade e eram o exemplo para as meninas que estavam na 5ª, 6ª e 7ª classes. E estas mesmas mentoras davam as sessões e faziam todo o acompanhamento, faziam visitas domiciliarias, reuniões comunitárias, tudo o que envolvia o programa Mwarusi. E elas eram um espelho para estas meninas porque também já tinham vivido a realidade que elas estavam a viver.

Mas, no ano seguinte existiu a necessidade de haver um treino para essas mentoras para se tornarem melhores manas, para terem mais competências para poderem ajudar as Mwarusis. Foi quando iniciou o programa de Liderança e Empreendedorismo Social, o CHANGE.

Começou com a primeira turma, constituída por 14 mulheres e o objetivo era desenvolver capacidades para poder implementar no projeto Mwarusi. E começaram aqui 2 áreas distintas. Na primeira, tínhamos formação dividida em 3 módulos: “Liderar o eu”: saber quem eu sou, quais são as minhas áreas fortes e a desenvolver; “Liderar com os outros”: como conhecê-los para juntos podermos trabalhar e ajudar a Mwarusi; e “Transformar o mundo”, onde tivemos um estágio em Portugal e pudemos conhecer outra realidade para mudar o nosso próprio mundo.

E na segunda área, tínhamos o trabalho comunitário, ou seja, tudo o que aprendíamos nos módulos e nas formações, era transferido para a nossa comunidade e para as meninas, para que elas conseguissem ultrapassar os seus obstáculos.

Finalmente, em 2017, a Direção da Girl MOVE sentou-se para voltar a sonhar e a reescrever a pirâmide e foram criados os novos termos:

• CHANGE: o programa de Liderança e Empreendedorismo Social, com as Girl Movers, raparigas já licenciadas ou mestres de todo o país, que têm a área de formação e o trabalho comunitário;

• LEAD: programa de liderança para jovens que estão na universidade e que realizam as sessões com as meninas e tem como objetivo ajudá-las a visualizar como será o seu futuro, qual o seu papel na sociedade, mostrar que o mundo não é somente Nampula;

• BELIEVE: para as Mwarusis da 7ª classe, cujo foco é fazer com que continuem na escola e percebam que a escola é o único veículo que as pode fazer chegar onde elas quiserem chegar, que a base é a escola.

São estes os 3 programas e cada um está interligado, cada um vive porque o outro existe. Os programas estão todos conectados porque cada um inspira o outro, e juntos tornam-se cada vez mais fortes.

Foste Girl Mover da Turma 1. Como descreves a tua experiência?

Para mim foi uma das melhores experiências que já tive, porque veio confirmar muita coisa que eu achava que era loucura. Por muitos anos achei que eu fosse a louca da minha sociedade e do meu mundo, e isso fez com que me tornasse alguém que não me queria tornar. Muitas vezes eu sorria quando na verdade queria dizer “Não, eu não acho que isto seja certo. Não, eu não quero fazer isso”. Porque eu não tinha autoconfiança e achava que eu estava errada e era louca. E ter conhecido a Girl MOVE foi um despertar, e perceber “Eu não sou só louca. Existem loucos comigo. Existe uma loucura saudável, existe uma loucura que faz bem ao mundo”.

Quando estava na faculdade eu não estava perdida, sabia exatamente o que queria fazer quando terminasse, queria tirar o curso de Relações Internacionais e queria abrir o meu salão de beleza, porque sabia que a beleza é um fator que faz com que a mulher se sinta mais forte e confiante. Tinha isso claro na minha cabeça, só não sabia como fazer. E quando conheci a Girl MOVE encontrei o meu propósito e o meu caminho. Quando comecei a trilhar este caminho, foi muito surpreendente para mim perceber que eu era capaz e fui me tornando cada vez maior, com mais certezas, sabia que podia dar a minha opinião, dizer “não”, e que posso ser o que eu quiser. E foi principalmente no módulo “Liderar o Eu” que eu desbloqueei e tirei toda a armadura que eu tinha, resgatei o verdadeiro eu e comecei a transformar-me. E o meu objetivo era transformar-me porque sabia que existia uma Júlia lá dentro e sabia que existiam outras pessoas que passam por aquilo que aquela Júlia esteve a passar e eu quero ajudar. E isso virou a minha missão, o meu estilo de vida, passei a viver só para isso. A minha missão é desbloquear o potencial das pessoas e fazê-las ver que não são só mais uns loucos e que existe um mundo para loucos.

E estar com as Mwarusis… na minha primeira sessão eu desatei a chorar. Não por pena, mas porque me apercebi que se eu tivesse tido uma mentora na faixa etária daquelas Mwarusis, eu teria as maiores asas do mundo, eu teria voado e feito maravilhas. E ter visto naquele momento que eu tinha oportunidade de ajudar as Mwarusis a ter asas foi uma sensação indescritível.

Quando acabaste o programa CHANGE foste convidada a trabalhar no programa BELIEVE. Como surgiu esta oportunidade?

Quando eu terminei o programa em 2016, já sabia o meu propósito e já tinha realizado muitos sonhos, já tinha criado o meu primeiro salão de beleza em Nacala, já estava a criar a minha linha de produtos naturais, mas senti que ainda tinha muita coisa a ser feita. E pensei em dar continuidade ao que já fazia e fazia muito bem. E na altura havia a oportunidade de continuar como membro da equipa do BELIEVE e comecei como Gestora das Operações, que não era a área que me fazia mais feliz por ter de mexer com dinheiro, mas sabia que mesmo assim iria estar sempre com as Mwarusis. Trabalhei nessa função por um ano, e no ano seguinte fui desafiada a ser Gestora do Projeto e foi aí que percebi que estava no lugar certo, a fazer a coisa certa. Tive várias oportunidades de sair da Girl MOVE mas decidi ficar até hoje, porque é isso que me dá gozo, este é o meu combustível. Não me sinto cansada porque faço o que eu gosto. Fiquei por um ano como Gestora do Projeto e este ano foi desafiada a abraçar a Coordenação do LEAD e BELIEVE.

Podes explicar-me como é um ano e uma semana normal no BELIEVE, como é que se vê a interligação real no dia-a-dia delas?

Primeiro, o objetivo do BELIEVE é a permanência da rapariga na escola, com foco na transição escolar. E decidimos focar-nos nas raparigas da 7ª classe porque é nesta altura que elas têm a menarca (1ª menstruação), e que todos os obstáculos que falei anteriormente começam a surgir. E quando elas passam para a 8ª classe, o obstáculo da distância torna-se muito mais forte.

Num ano típico, o currículo Mwarusi tem estas duas componentes: habilidades para a vida e apoio escolar. Nas habilidades para a vida temos 4 módulos:

• “Eu protejo-me”: onde falamos sobre autoestima, direitos e deveres da criança, e fazemos uma visita à Ação Social para terem consciência de onde podem ir caso os seus direitos sejam violados

• “Eu protejo o meu corpo”: falamos sobre conhecer o corpo, saber as diferenças entre um homem e uma mulher, existência de doenças, principalmente doenças sexualmente transmissíveis, o ciclo menstrual, higiene, saúde, nutrição… tudo o que tem a ver com o bem-estar do seu corpo. Também com foco na ideia de que “tens de estar bem para ir à escola”. Neste módulo, faz-se uma visita ao hospital

• “Eu protejo os meus estudos”: falamos sobre o valor que a escola traz, se é um resultado que vale a pena ou não, e faz-se uma visita à universidade e a centros de formação

• “Eu protejo o meu dinheiro”: fazemos a distinção entre aquilo que é uma necessidade e um desejo, ensinamos a fazer poupanças, como guardar o dinheiro para usar para satisfazer uma necessidade. Na parte de apoio escolar, o foco é na matemática e português, e durante todo o ano vamos dando matéria para as preparar melhor.

Para fortificar este currículo existem alguns temas que vamos acrescentando. Por exemplo, agora estamos a incluir o desporto nas sessões porque acreditamos que desbloqueia o potencial das meninas. Temos também reuniões comunitárias, onde os pais são convidados a pensar qual é o melhor futuro para as meninas que vivem nos seus bairros e como as podem ajudar a crescer.

Numa semana típica, à quarta-feira temos sessão de habilidades para a vida, e quinta-feira temos sessão de apoio escolar. São sessões dadas por mentoras, com o apoio da Girl Mover. De 15 em 15 dias, as mentoras e Girl Movers têm formações para poderem dar estas sessões.

Tirando isto, as Girl Movers e mentoras fazem visitas domiciliarias às casas das Mwarusis para compreender junto dos pais como é o comportamento das meninas, como podem juntos trabalhar para que a menina continue a estudar. E estas visitas são feitas periodicamente, de 3 em 3 meses, por isso cada menina tem até ao final do ano 3 visitas feitas. Sempre que existe um determinado caso, por exemplo uma suspeita de gravidez ou casamento, faz-se acompanhamento: as mentoras e Girl Movers vão à casa da menina e à escola. O acompanhamento não está ligado às 3 visitas obrigatórias, funciona para poder ajudar esta menina a ultrapassar o obstáculo.

E às sextas-feiras, as Girl Movers, em coordenação com as mentoras, fazem a gestão de casos. Esta é uma ferramenta com a qual elas discutem os problemas que as Mwarusis estão a passar e veem quais são as soluções para poderem ajudar as meninas a ultrapassar. E aqui temos o apoio de outras instituições, como é o caso da polícia, da ação social, para podermos encaminhar os casos quando necessário.

E quais consideras que são os pontos diferenciadores do programa?

Nós temos o currículo desde 2014 e sentimos a necessidade de fortificá-lo, e acho que é isso que nos diferencia. Um dos elementos diferenciadores é o desporto: utilizá-lo para fazer com que as meninas desbloqueiem o seu potencial.

Temos também o Movimento M, um evento onde nos sentamos com outras organizações que têm o objetivo de trabalhar em prol da rapariga e da mulher em Moçambique, e discutir qual é a melhor forma de o fazer, trocar experiências, ferramentas e metodologias. O Open Space, que é um evento onde a comunidade discute temas associados ao futuro da rapariga daquele bairro.

O Scaleback é uma ferramenta usada depois das meninas transitarem para a 8ª classe, onde se apresentam os diferentes desafios que as meninas podem ter nesta nova fase e as leva a procurar soluções para os poderem ultrapassar.

Também chamamos a comunidade para apresentar os temas falados nos diferentes módulos, mostrar aos pais os temas e questionar qual é a melhor forma de os apresentar às Mwarusis.

Acho que são estes temas que fazem com que o currículo fique cada vez mais forte e ao mesmo tempo torna o BELIEVE um programa super diferenciador.

Quais foram os maiores desafios no início do projeto? Eles mantêm-se ou mudaram?

O desafio de as pessoas não conhecerem o projeto é algo que sempre nos assombra quando vamos a um novo bairro, porque as pessoas não nos conhecem, questionam e ficam desconfiadas, e algumas vezes proíbem as meninas de participar. Mas tem sido cada vez menos desafiante, porque temos tido testemunhos de pais que deixaram as filhas participar e que explicam como o programa ajudou a menina a desabrochar e a desenvolver, a tornar-se uma aluna e pessoa melhor. Por isso, sempre que há um novo recrutamento há sempre uma mãe e um pai a explicar o quão bom foi ter a menina no projeto. Com o passar dos anos acredito que vai ser um desafio cada vez menor.

Outro problema é na discussão que temos tido com os pais sobre o módulo “Eu protejo o meu corpo”, porque os pais normalmente pedem para tirar alguns temas que nós acreditamos que são importantes para o desenvolvimento da menina. Por exemplo, já nos pediram para tirar a pulseira que explica o ciclo menstrual, porque diziam que isso ajuda as meninas a fazer sexo porque sabiam quando não estavam no seu período fértil. E por mais que explicássemos porque era importante e que levássemos uma enfermeira para explicar, os pais proibiam este tópico.

Este desafio é o maior que temos, e até agora não encontrámos a melhor solução para ultrapassá-lo. Mas como eu disse, quanto mais tempo ficarmos numa comunidade, mais credibilidade teremos e mais abertura teremos para falar sobre vários temas.

Quais são os resultados que já se consegue ver?

Sem falar dos números, um dos exemplos que te posso dar com a maior felicidade e certeza, é por exemplo que as minhas Mwarusis já estão na 10ª e 11ª classes e não há melhor resultado que isso. As mentoras continuam a ter ligação com as Mwarusis que já não estão no projeto. As Mwarusis que estão fora de Nampula e continuam a sua vida escolar noutras províncias, até hoje ligam para dar os resultados da escola e falar de como e onde estão e quais os seus sonhos.

E o facto de simplesmente ver as Mwarusis deste ano a falarem com certeza, sem medo, à frente de pessoas, o que sentem e o que querem, que o que as pessoas dizem não é o que elas querem… isto supera números, supera qualquer outro tipo de coisa. Porque esta é a prova que o nosso trabalho está realmente a surtir efeito. E mais uma vez, é ter a confirmação de que o resultado do que nós fazemos não é imediato, é a longo prazo.

E quais são os próximos passos para o programa BELIEVE?

Queremos continuar a fazer o que nós fazemos, tendo sempre em conta que existem outras ferramentas para melhorar o nosso currículo. Temos o objetivo de prolongar o Scaleback para um ano, realizando sessões uma vez por mês, para fazer o acompanhamento destas Mwarusis. Queremos divulgar o programa Nampula para que outras organizações também possam tirar o que é melhor para eles.

É continuar a acreditar, a sonhar e a inspirar.

Imagem de destaque: Cedida por Dálvia Rodrigues