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Quotidiano de um estágio em Boston, cidade de muitos sonhos

O José Amaral, que estagiou na Enoport Wines, em Boston, durante a 23ª edição do inov contacto fala-nos do seu dia a dia nesta cidade
Quotidiano de um estágio em Boston, cidade de muitos sonhos

José Amaral | 2018 | Ed. 23 | Enoport Wines | Boston, Estados Unidos da América

Boston é uma das principais cidades dos Estados Unidos. E não está longe da liderança a nível de trânsito, de um sistema de transportes públicos caótico e frustrante, obras intermináveis em estradas, passeios e prédios, e rendas de casa absurdas. E mais: refeições em restaurantes ou em bares são insustentáveis. Um calor insuportável no verão, neve, frio e chuva nos outros 9 meses do ano. Mas, tudo depende da perspetiva.

Entre muitas outras coisas, Boston é também uma cidade que se preocupa com questões ambientais e são infinitas as manifestações locais que lutam por um lugar melhor. Assim como é a casa dos principais centros financeiros, comerciais e industriais do país. E também dos mais prestigiados centros mundiais de educação, ciência e investigação - “The World´s Capital of Learning”, o sonho de vários estudantes e jovens profissionais que ambicionam estudar em Harvard ou no MIT.

Mas Boston é também desporto, com os Red Sox no basebol, os Celtics no basketbol, os Bruins no hóquei no gelo. É uma cidade imersa em história, conhecida como o “Berço da independência norte-americana”, com a retirada dos ingleses do país no famoso episódio da Boston Tea Party. É uma cidade que abraça a arte, seja qual for o sentido em que esta se manifeste. Uma cidade que envolve os parques e as paisagens naturais com a arquitetura única dos seus edifícios. Uma cidade com tanta coisa a acontecer ao mesmo tempo, que uma pessoa se perde no meio de tantas opções. Muitas pessoas facilmente chegam às mesmas conclusões que eu. Aquilo que é invisível aos olhos (a muitos deles, pelo menos) e que não se comenta nem se encontra nas notícias, nem na internet, é que Boston é uma cidade de pessoas.

Acredito que a preocupação das pessoas umas com as outras esteja na base de tudo o resto. O simples “How are you?”, que recebemos ao entrar em qualquer estabelecimento, faz-nos sentir, instintivamente, em casa. À saída há sempre uma voz que solta um “Have a great day!”. Estas palavras fazem-nos sentir motivados e pensar que somos ouvidos e que não estamos sozinhos. Mesmo que apenas nos digam isso porque são educados e politicamente corretos. Não interessa. Sabe sempre bem ouvi-lo. A abertura e a confiança que têm uns com os outros é contagiante. No meio de toda a dinâmica de fazer dinheiro para comprar e ter, esconde-se o fazer dinheiro para comprar e oferecer. A entreajuda, a inclusão social, o voluntariado, o dar sem esperar nada em troca. E essa vertente passa  despercebida exatamente por isso.

Não se vangloriam aos amigos de que doaram cinco mil euros para ajudar doentes no hospital, nem partilham fotografias no Instagram a brincar com crianças em orfanatos ou a conversar com idosos em lares. Simplesmente fazem-no. E são milhares as instituições, grupos de comunidade e organizações que o incentivam.

As próprias empresas privadas e públicas oferecem dias aos trabalhadores para estarem junto de uma organização a apoiar uma determinada causa. Falo por experiência própria, por ser voluntário na organização Cradles to Crayons, que oferece roupa, condições higiénicas, brinquedos e presentes de aniversário a crianças cujas famílias não têm condições para o fazer. E são intermináveis os grupos de trabalhadores e estudantes que aparecem para ajudar no que for preciso. Sente-se que não o fazem apenas por obrigação, observando os rostos e a sua entrega à causa: muitos voltam mais tarde, aos fins de semana com outros grupos de amigos e conhecidos.

Esta cooperação não se resume à ajuda económica. Vai até muito além disso. Ultrapassa os bens materiais e atinge um outro nível, o espiritual, que é cada vez mais uma realidade presente em qualquer lado: a solidão, a ansiedade, a falta de sentido da vida e a inércia que contamina grande parte das pessoas. Assim, são milhares os eventos, conferências, workshops, festas e atividades (a maior parte grátis) que acontecem todas as semanas.

O respeito e a solidariedade andam de mãos dadas nesta cidade. Aqui raramente se encontram pessoas a desviar os olhos quando se cruzam com um sem-abrigo na rua ou quando estão sentadas no autocarro e uma pessoa com deficiências ou uma mulher grávida entra. Da mesma forma, é difícil não reparar na maneira como as pessoas lidam umas com as outras nos bairros. Desde oferecer restos de comida aos vizinhos, a deixar mobília, e muitas outras coisas à porta de casa. E também os sorrisos e olhares genuínos que se trocam na rua. As chamadas “Neighborhood nights”, nas quais cantores e artistas voluntários atuam e toda a gente é bem-vinda.

Este espírito de comunidade não acontece apenas verticalmente, dos ricos ou dos mais favorecidos para os pobres ou para as etnias menosprezadas. Acontece também dentro de um mesmo grupo social e geográfico.

Dou por mim, constantemente, a reparar nas mais diversas coisas que se fazem aqui e para mim não fazem sentido. E muitas vezes penso que em Portugal tudo é melhor. Mas esqueço-me que os olhos só veem aquilo que queremos que eles vejam.

No outro dia fui acabar de ler um livro ao parque. É fácil encontrar um sítio nosso nesta cidade. Deixo uma citação que me marcou: “Devemos interessar-nos por aquilo que não sabemos, em vez daquilo que já conhecemos”. O próprio livro desafiou-me a prestar atenção àquele momento. E assim fiz. À minha direita, duas idosas russas deitadas em espreguiçadeiras, à minha esquerda uma família de hispânicos a fazer um piquenique. Um homem branco e uma senhora asiática a passear com o bebé. Uma muçulmana de burca e o seu labrador a brincar com o cão de um típico cinquentão americano. Numa toalha mais longe, duas estudantes a namorar. No meio de tudo isto esquilos, gansos, libelinhas, árvores e um lago.

Senti-me pequeno, mas fazendo parte de algo maior. Uma autêntica explosão de sentidos. Parecia que estava a sonhar e que toda aquela harmonia de pessoas, animais e espaço não era real. Mas era. E esteve lá desde o princípio. Só precisava de abrir os olhos.