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Sport for life em Cabo Verde: O desporto como fator de inclusão, participação e empoderamento

Léo Moreau é atualmente Chef de Mission Cap-Vert Paris 2024. Anteriormente era coordenador do projeto Sport for Life em Cabo Verde e foi nessa nessa altura, em 2019, que o J. Bernardo Louro, então entagiário do inov contacto na SportImpacto de Cabo Verde, o entrevistou.
Sport for life em Cabo Verde: O desporto como fator de inclusão, participação e empoderamento
J. Bernardo Louro e Léo Moreau

João Bernardo Robles Louro | Ed. 23 | 2019 | SportImpact | Praia, Cabo Verde

Léo, o desporto pode ser considerado indispensável ao desenvolvimento humano. Concordas?

Quando falamos de desenvolvimento através do desporto, temos que saber do que estamos a falar e do significado das palavras. Originariamente, a palavra “desporto” está associada ao lazer, ou diversão. Mas, no século XX o desporto evoluiu e tornou-se  um sistema profissionalizado, envolvendo questões económicas, financeiras e políticas importantes. Estes aspetos às vezes afastam-nos do valor original do desporto.

É importante ter presente que o desporto é, antes de tudo, uma ótima ferramenta para juntar pessoas de diferentes origens, idades, géneros e meios sociais dentro do mesmo espaço, para seguirem as mesmas regras, os mesmos objetivos e colaborarem num ambiente coletivo. Assim, o desporto tem um poder educacional e pedagógico únicos, principalmente junto das crianças, para veicular valores de respeito, disciplina, tolerância e amizade e, eventualmente, excelência e superação dos limites. Também ajuda no equilíbrio e na integração dos indivíduos na sociedade.

Para ti qual é a qualidade mais importante do Sport for Life?

O objetivo principal da nossa iniciativa é gerar impacto real no terreno. Os cursos e os eventos desportivos são os momentos em que sentimos mais essa energia e onde se vê melhor o resultado do nosso trabalho. Estar com os jovens voluntários e as crianças nos campos de desporto, depois de várias semanas ou meses de preparação e praticar desporto ou brincar, é sempre a melhor recompensa.

Acho que vários aspetos do Sport for Life reforçam esta energia e constituem as qualidades do projeto: o fato de os eventos desportivos serem organizados pelos próprios voluntários/participantes locais cria uma dinâmica particular e os eventos desportivos propõem várias modalidades, o que gera muito movimento no campo com as crianças.

Quais são para ti os principais desafios do Sport for Life?

Existem vários desafios no Sport for Life e todos são oportunidades para melhorarmos. Somos uma organização ainda pequena em termos de recursos humanos e financeiros, o que é bom, porque qualquer um de nós tem o poder de mudar as coisas e fazer a diferença, somos obrigados a procurar soluções inventivas para realizar os nossos projetos. Ao mesmo tempo, isso requer muita energia, que podíamos investir noutros aspetos do nosso trabalho. Neste âmbito, criámos o modelo “zero dólar”, que faz parte da nossa filosofia e que pretendemos transmitir aos outros através das nossas atividades. A ideia principal é considerar que apesar dos desafios que enfrentamos, fazemos as coisas acontecerem, seja de que forma for. A palavra “desafio” não deve ser sinónimo de “desculpa”.

Além da questão dos recursos, outro desafio importante é o do impacto. O impacto real no terreno é o objetivo mais importante da nossa iniciativa. Como trabalhamos com uma equipa reduzida e, muitas vezes, à distância, às vezes é difícil gerar e medir o impacto no dia a dia.

Um dos elementos mais importantes do Sport for Life é o empoderamento dos participantes, são eles que devem replicar as atividades e gerar impacto nos seus bairros, comunidades, cidades e países, através de cursos e eventos por eles facilitados. Dependemos muito dos voluntários, o que é ótimo em termos de energia e motivação, mas constituí um grande desafio em termos de continuidade, replicação regular e impacto de longo prazo nos vários países.

Em que medida consideras que o Sport for Life pode gerar impacto em África?

África é um continente muito jovem, com quase 40% da população menor de 14 anos. Isto representa um desafio demográfico e social enorme, mas significa também que existe um tremendo potencial e muita energia para ser aproveitada. A juventude africana precisa de oportunidades. O Sport for Life pretende providenciar isso, empoderando e responsabilizando os jovens através do desporto para tomarem conta das suas vidas, acreditarem nos seus sonhos e realizá-los.

O desporto é uma ótima ferramenta para cumprir este objetivo de gerar impacto, porque a prática desportiva está muito presente em África. O desporto pode ser praticado com poucos recursos, é muito apelativo para as crianças e os jovens e é permeável a ideias novas e criativas. O modelo “zero dólar” e a "pirâmide de replicação",  são fundamentais na filosofia do Sport for Life e são processos que podem ajudar a gerar impacto nas várias comunidades e países.

Um dos objetivos dos colaboradores do Sport for Life é usar o projeto para atingir as zonas mais remotas dos seus países, onde existem menos condições. Pensas que o Sport for Life pode fazer a diferença nestes contextos?

Como já disse, o princípio de empoderamento é essencial para garantir a autonomia e replicação do projeto ao longo do tempo. Formamos formadores e organizadores de eventos desportivos, que formam outros formadores e organizadores, que formam outros, etc. Através deste sistema pretendemos atingir as zonas e as populações mais vulneráveis e marginalizadas, seja a nível geográfico ou social.

Obviamente, proporcionamos apoio e acompanhamento aos atores, mas só durante o tempo necessário, não mais. A ideia é que eles se tornem donos do projeto nos seus respetivos países, com a possibilidade de adaptá-lo em função dos contextos e necessidades locais. Os atores presentes no terreno no dia a dia têm mais conhecimentos do que nós.  Além disso, o Sport for Life é um movimento, portanto tem de evoluir e mudar, sempre. Mudar é um bom sinal de vida e dinamismo.

Em vários pontos de Cabo Verde, principalmente Sal e Santo Antão, ocorreram vários programas coordenados e desenvolvidos pela SportImpact e pelo COC (Comité Olímpico Cabo-verdiano), nomeadamente o VerdeOlympics e o M-Olympics, sociedade. Podes falar um pouco destes dois programas?

O Sport for Life teve início em Cabo Verde no ano de 2016, com a coordenação nacional do COC, estivemos nas 9 ilhas habitadas do país, com formações e eventos desportivos.

Decidimos focar as atividades numa temática especifica, com um nome específico, a fim de utilizarmos o desporto como ferramenta de sensibilização social junto das populações locais, principalmente os jovens.

Em 2016, o projeto VerdeOlympics concentrou-se na proteção do meio ambiente, ligando atividades desportivas a ações de promoção e sensibilização ambiental e foi nomeado pelo Comité Olímpico Internacional como estudo de caso a ser replicado pelos outros Comités Olímpicos Nacionais do mundo, na área de Desporto e Sustentabilidade Ambiental. No ano seguinte, 2017, o foco foi dado à promoção da igualdade de género no desporto e participação das mulheres e raparigas na prática desportiva, daí o nome M-Olympics, o “M” é de “Mulheres”. Em 2018, o projeto foi focado nos Clubes Olímpicos, que visam estruturar as atividades Sport for Life e propor cursos e eventos desportivos de forma mais regular e frequente no território. Em 2019 centrámos-nos na internacionalização, com a criação e o desenvolvimento do Africa Office, sendo que um dos objetivos principais do mesmo é reforçar o Sport for Life em Cabo Verde e Moçambique.

Nestes dois programas sentiste que o SportImpact foi capaz de mudar o pensamento, a mentalidade de uma criança, na forma como olha para o desporto?

Acho que as crianças olham para o desporto de uma forma naturalmente positiva, por ser apelativo, dinâmico, divertido. Eu diria que o desafio principal não é mudar a mentalidade de uma criança em relação ao desporto – não queremos forçar ninguém a amar o desporto, mas oferecer a cada criança a oportunidade de experimentar os benefícios físicos, mentais e sociais da prática desportiva e a capacidade de se divertir. Nem todas as crianças têm acesso a este tipo de ocasiões regularmente, mas é bastante fácil reunir condições mínimas para praticar desporto.

Quando as crianças veem que é possível, mesmo sem grandes recursos materiais, apenas com madeira ou cartão, praticar desporto, detetamos uma mudança de pensamento e estamos a fazer desporto, não é preciso ter bolas novas ou ótimos equipamentos para nos divertirmos.

Isto é válido também para os organizadores e facilitadores. Rapidamente, ao longo dos cursos e workshops, reparam que estão a fazer as coisas acontecerem sem grandes recursos, apenas com ideias, colaboração e força de vontade.

Certamente já sentiste que foste capaz de modificar um rosto menos feliz num dos eventos organizados pela Sport for Life. Tens alguma história que queiras partilhar?

Qualquer evento desportivo com as crianças proporciona um bom número de sorrisos e caras alegres! Temos o cuidado de não deixarmos nenhuma criança sozinha ao lado do campo, é sempre bom incentivar uma criança a entrar num grupo, a encontrar novos amigos e vê-la acreditar que também pode participar das atividades.

Achas que a SportImpact é capaz de promover o desenvolvimento humano através do desporto?

Sim, acredito que o desporto pode ter esse papel, se falarmos de desporto inclusivo, participativo e capaz de veicular valores que fazem sentido para os praticantes.

Se usarmos o “desenvolvimento” como forma de um país se comparar relativamente a um referencial exterior (geralmente, os modelos sociais ocidentais modernos), acho que estamos no caminho errado, porque isto subentende uma noção de atraso a ser colmatado através do “desenvolvimento”.  Essa não é a nossa ideia nem a nossa filosofia. Se falarmos de “desenvolvimento” no sentido de avançar em direção de um ideal social autêntico e definido pelas próprias sociedades interessadas, sim, quero que o desporto faça parte deste processo e acredito que o desporto tem este potencial.

É por isso que o empoderamento dos nossos colaboradores é essencial, para eles tomarem conta do projeto e efetuarem o desenvolvimento que realmente pretendem, sem a intervenção ou ingerência sistemática de entidades exteriores. São questões complexas, sensíveis e a verdade é que nem sempre atuamos de forma 100% consciente neste âmbito.

Que nível de desenvolvimento humano achas que pode ser atingido através do desporto?

Acho que temos de ser humilde e realistas sobre esta questão. Pretendemos trabalhar com populações que muitas vezes têm vidas difíceis no dia a dia, com preocupações e problemas profundos e complexos. O desporto não vai solucionar tudo, sejamos honestos. Mas se através do Sport for Life ou de outra iniciativa, conseguirmos proporcionar momentos de diversão e despertar para as crianças oportunidades de desenvolvimento pessoal/profissional e de crença nos sonhos de cada um, será ótimo.

Eu gosto muito de uma lenda de um povo nativo americano, e contada pelo ensaísta e ecologista francês Pierre Rahbi: a lenda do beija-flor. Um dia houve um grande incendio na floresta. Todos os animais, aterrorizados, observavam o desastre sem fazer nada. Apenas o beija-flor se movia, indo buscar algumas gotas de água no rio com o  bico, para atirar no fogo. Depois de algum tempo, o tatu, irritado com tanta agitação ridícula, disse: “Beija-flor! O que estas a fazer? Não é assim que vais apagar este fogo!”. E o beija-flor simplesmente respondeu: “Eu sei, mas assim faço a minha parte…”. Então, façamos a nossa parte, com ambição, humildade e realismo.

Obrigado, Léo.